A Crise Financeira atual da Argentina
Por Bruno Magliari, Hugo Moura e Maria Eduarda Café
Introdução da Crise Argentina
A Argentina tem um histórico de crises cíclicas. Essas crises já levaram o país a precisar trocar sua moeda nacional cinco vezes, e já é o país com um maior número de calotes na dívida externa na história. (GONZÁLEZ, 2021). Para entender o porquê deste país que em 1921 tinha um PIB equivalente aos países desenvolvidos decaiu tanto, basta apenas olhar os pilares de sua economia.
O problema argentino começa no seu processo de industrialização, que foi mal implementado. Até 1976, o país adotava um clássico protecionismo industrial, como era praxe para países em desenvolvimento à época. Contudo, o início da ditadura acabou com o protecionismo, dificultando a competição de indústrias domésticas com as estrangeiras e tornando o país dependente da importação de produtos do exterior. Sendo um país industrialmente atrasado, a economia argentina dependia muito da exportação de commodities. (GONZÁLEZ, 2021). Dessa forma, quando o preço das commodities flutua, há um impacto direto na captação de dólar no país.
Outro grande problema intrínseco à economia argentina foi o projeto de dolarização de sua economia, ocorrido na década de 90, mas que ainda tem sequelas no país atualmente. Seguindo um projeto econômico do Consenso de Washington, em 1991 o país passou a ter sua moeda fixada em paridade ao dólar, ancorando sua moeda à moeda americana e abrindo mão de sua autonomia monetária. (BATISTA, 2002). Este projeto pressupunha impedir as crises cíclicas da moeda argentina ao vinculá-la em uma moeda forte à época. Evidentemente, essa falta de autonomia monetária trouxe diversos problemas para a economia argentina, particularmente quando estourou a crise asiática em 1997. A falta de controle argentino sobre a moeda dificultava que o governo pudesse servir de credor em última instância para a economia doméstica frente à crise, o país entrou em uma grande recessão. (BATISTA, 2002). O peso estava sobrevalorizado, devido ao seu atrelamento ao dólar, o que dificultava a recuperação econômica. Esse cenário crítico tornava o país pouco interessante para investimento estrangeiro, logo foram implementados projetos de austeridade fiscal para tentar retomar a confiança, que logo se provaram pouco efetivos e até agravam a recessão. (BATISTA, 2002). Em 2002, o país acabou com a paridade e desvalorizou o peso, porém os
impactos da recessão ainda seriam sentidos na economia por muitos anos, como herança da dolarização que durou cerca de 10 anos.
Quando a pandemia do coronavírus começou em 2020, a Argentina precisou iniciar uma quarentena para conter a doença, o que agravou ainda mais os problemas econômicos do país. Sem investimento estrangeiro e com uma grande dívida externa, o governo precisou simplesmente emitir mais pesos. Apenas em 2020, foram emitidos mais de 1 bilhão de pesos, levando a uma desvalorização de moedas e consequente aumento dos preços. Diante dessa desvalorização da moeda, os argentinos começaram a trocar seus pesos por dólar para tentar manter o valor do dinheiro, levando a uma redução ainda maior na quantidade de reservas no país. (GONZÁLEZ, 2021). Somado à falta de reservas, o país enfrentava um grande aumento da dívida pública. Como forma de tentar conter os impactos do fechamento de comércios pela quarentena, o governo argentino estabeleceu um auxílio financeiro de inicialmente 10.000 pesos (750 reais), o que aumentou a dívida pública em 1,2 bilhões em apenas 3 meses. (FERRAZ, 2020). Diante de um possível nono calote da dívida externa, o país precisou negociar as dívidas, que já totalizam mais de 300 bilhões de dólares. (FERRAZ, 2020).
O Agravante da Pandemia
A partir dessa introdução entendemos que a Argentina já estava em uma situação financeiramente complicada, mesmo antes da pandemia acontecer. Contudo, não podemos negar que com a crise de COVID-19 atingindo o país e o mundo todo, a economia argentina foi indo de mal a pior. Na realidade, no início da crise, a Argentina conseguiu conter bem o avanço da pandemia, pelo menos por um tempo, sendo vista até como referência na América Latina (MANÇANO, 2020), decretando lockdown total desde o dia 20 de março do ano passado, enquanto que no Brasil um lockdown rigoroso nunca aconteceu, nos levando a ser um dos piores países do mundo a conter a pandemia.
Contudo, depois de quase um ano de pandemia, vemos que as medidas decretadas pelo governo de Fernández, revelaram a persistência das desigualdades sociais na Argentina. Com o bloqueio total, houve uma alta nos preços de produtos, acelerando ainda mais a inflação. Então com os preços de produtos extremamente inflacionados, a moeda argentina
vai perdendo seu valor muito rápido, em relação às outras moedas, como o dólar e até mesmo o real. Vemos então que essa questão da inflação já de um tempo gera uma preocupação e certo medo na população argentina. Assim pesquisas realizadas no ano passado, que buscam entender quais eram os sentimentos da população com a chegada do vírus no país, nos mostram que a preocupação econômica com certeza se destaca:
“El subtema más relevante que aparece en ambos momentos de toma de datos es el denominado Incertidumbre que expresa un sentimiento generalizado de preocupación en la población. […] la incertidumbre debe ser comprendida también vinculada a las consecuencias sociales y económicas que supone la medida del aislamiento para la vida cotidiana, social y laboral. En ese sentido, algunas personas expresaban: Extraño a mi familia y mi economía está muy mal (Ola 1, hombre, 57 años); Incertidumbre económica, preocupación por familiares, caída laboral (Ola 2, hombre, 43 años).” (JOHNSON et al., 2020, p.3-4).
Nesse sentido de incerteza e medo, o que muitos argentinos fazem para se proteger da inflação é: eles compram dólar, já que essa é uma moeda muito mais estável do que o próprio peso. O problema é que, como já mencionado anteriormente, essa prática acabou se tornando um hábito por causa do histórico de instabilidade econômica do país.
Dessa forma, de acordo com a matéria de Yahia (2020), entendemos que por causa do volume de compra da moeda, as reservas de dólares do país começaram a cair drasticamente. O governo decidiu então por limitar o acesso dos argentinos à moeda norte- americana, dizendo que só poderiam ser comprados o valor de US $200 por mês. Ainda, determinou um imposto de 35% sobre compras no exterior com cartões de crédito e débito e pagamentos eletrônicos em dólar. Além disso, empresas com dívidas acima de US$ 1 milhão poderiam comprar no máximo 40% dos dólares necessários para pagá-las.
Ainda, nessa mesma matéria, são trazidos alguns comentários de economistas que chegam a afirmar que a crise da covid-19 não justifica as recentes decisões cambiais da gestão do presidente Alberto Fernández , colocando que “A percepção é a de que o governo voltou aos velhos tempos das intervenções e apropriação de recursos privados dos tempos do kirchnerismo”* (YAHIA, 2020. *a citação não é da autora da matéria, mas de um entrevistado). O economista-chefe do BNDES, Fabio Giambiagi, afirma que a decisão de modificar o mercado cambial está relacionada à “profunda crise de confiança e de perspectivas que existe no país há muito tempo”. Entendemos a partir disso que nunca houve uma “confluência de fatores tão negativa como a atual”, isso porque, como observamos, somam-se uma crise de longa data, crise não resolvida durante o governo Macri (2015-2019) e um colapso provocado pela pandemia com a crise sanitária que vem piorando (YAHIA, 2020).
Como consequência então de todas essas tribulações financeiras, a pobreza na Argentina avançou exponencialmente nos últimos meses, e segundo dados mais recentes do Indec, o equivalente ao IBGE argentino, a linha de pobreza no país subiu para 42% da população, um aumento de dois pontos percentuais desde o 1o semestre de 2020 – sendo que 10,5% estão em nível de indigência, marcando uma curva preocupantemente ascendente no país (COLOMBO, 2021).
Com esse cenário de pobreza se agravando, Sylvia Colombo (2021) nos mostra que pais de família desempregados estão tendo de levar seus filhos às ruas para buscar trabalho, isso tudo enquanto os preços dos alimentos aumentam cada vez mais, o que tem tirado grande parte das refeições das crianças e famílias argentinas. Desse modo, momentos de lazer e brincadeira em muitos casos foram substituídos pela necessidade de trabalhar para ajudar a família. Ainda, segundo dados da Unicef referentes a 2020, 16% dos adolescentes realizam algum trabalho informal no país, sendo que desse total, 46% não trabalhavam antes da pandemia (COLOMBO, 2021). A partir disso, a autora da matéria nos traz a fala de um adolescente argentino de 13 anos que diz: “não me importo de vir aqui porque gosto de estar na cidade. Mas me dá dó que minha mãe tenha que pedir esmola e que o bebê esteja sentindo frio”, isso enquanto o pai dessa família trabalha no interior, como auxiliar de construção e só volta para casa a cada três semanas (COLOMBO, 2021).
A partir disso, Agustin Sálvia, sociólogo da Universidade de Buenos Aires, afirma nesse artigo da Folha de S. Paulo que “a pandemia agrava a pobreza infantil porque deteriora as condições de vida do núcleo familiar, mas a pobreza na Argentina se deve às causas estruturais que vão além da crise sanitária”. Investimentos assistencialistas como o IFE, que foi um tipo de auxílio emergencial concedido pelo governo argentino a população de baixa renda, são essenciais em momentos de emergência como o que vivemos até hoje e, por isso com o fim do mesmo no final de 2020, organizações sociais e trabalhadores começaram a organizar atos semanais em Buenos Aires para exigir a volta do benefício assim como políticas de estímulo à economia, já que o governo tem oferecido poucas alternativas para enfrentar a pobreza com eficiência (COLOMBO, 2021).
Dessa maneira, tendo apresentado todos os pontos acima que nos mostram como a pandemia de fato agravou o sistema econômico argentino, acreditamos que seria interessante trazer um pouco da diferença do Brasil e Argentina nesse contexto de crise financeira, já que a Argentina é um parceiro comercial importante para o Brasil, e por esse motivo, a grave crise econômica enfrentada pelo país vizinho gera grandes preocupações por aqui. Os dois países até sofrem de um problema comum, que é a questão da desvalorização da moeda, já que o real e o peso argentino têm se colocado frequentemente nas duas últimas colocações nas listas das moedas que mais perderam valor frente ao dólar, com a moeda americana subindo cerca de 23% sobre o real e 45% sobre o peso argentino dentro de um ano (TREVIZAN, 2021).
Contudo, apesar desse fenômeno em comum, dados mostram que as economias dos países se encontram em uma situação bem diferente, com a Argentina levando a pior dessa vez. Uma das principais questões, por exemplo, que levam a essa diferença é essa dependência da Argentina pelo dólar estadunidense. As reservas em moeda estrangeira estariam em baixa, devido às compras exacerbadas de dólar dentro do país. Assim, encontra-se grande dificuldade para manter sob controle uma dívida pública que tem mais de 76% de sua composição em dólar, segundo dados do Ministério da Economia da Argentina (TREVIZAN, 2021). Como o país, naturalmente, não pode emitir a moeda, a sustentabilidade da dívida ganha um forte fator de dúvida além de que as previsões do FMI também indicam uma situação mais delicada na Argentina, onde a pandemia da covid-19 pode causar um tombo de 10,4% na economia do país.
“O quadro na Argentina é o de um país sem reservas cambiais, enquanto a nossa cresceu, e não caiu. É um quadro de um país que tem déficits fiscais brutais e acumulou uma dívida externa, principalmente no final do governo Macri, com US$ 51 bilhões para a Argentina do FMI. Isso é um país quebrado. Que não tem recurso sequer para gerenciar o valor do dólar, um déficit fiscal brutal de 106%”* (TREVIZAN, 2021. *fala de economista entrevistado na matéria).
Desse modo, a partir do que foi apresentado entendemos que de fato a crise econômica argentina já dava seus primeiros passos desde o mandato de Macri, contudo com a chegada do coronavírus ela se agravou bruscamente. As medidas tomadas pelo governo argentino, que analisaremos com mais profundidade na próxima seção, até ajudaram por um tempo, mas agora depois de quase um ano de pandemia elas já não têm mais o mesmo efeito.
E mesmo assim, trazendo um pouco da ideia de Mustante em seu artigo deste ano, e entendendo o papel do neoliberalismo nesse conceito pandêmico, vemos que os Estados, e
nesse caso focando na Argentina, tomam cada vez menos medidas que visam as necessidades básicas da maioria da população, como a saúde, a educação, a moradia, e assim intensificando a precarização da vida da classe trabalhadora (MUSTANTE, 2021). A partir disso e das palavras de Mustante, entendemos um ponto muito importante: a pandemia não é a razão da crise, na realidade ela escancara a crise, a colocando ainda mais em evidência.
Medidas paliativas ou como a Argentina tenta emergir desse tsunami
A insegurança financeira do cidadão e empresariado argentino se caracteriza por uma instabilidade tanto no movimento dos bens de capital (nos altos círculos do sistema monetário) como também pelos bens de serviços, que vem sendo marcado pela informalidade do trabalho e alienação das jurisdições sindicais. As nebulosas condições para investimentos e, principalmente, a gradativa precarização das cláusulas trabalhistas, vem alastrando uma tempestade de incertezas e medos que afrontam a virtualidade cidadã e o tecido organizacional da sociedade argentina.
Tendo esse cenário delicado em sua economia, o governo argentino tem lançado mão de diversas políticas paliativas para a segurança financeira da parcela popular mais pobre e incentivos fiscais para o retorno do investimento estrangeiro e de suas empresas nacionais. Tais medidas vêm tentando assegurar o acesso alimentar, devido a alteração de preços ocasionados pelas oscilações inflacionárias, assim como, a manutenção dos movimentos de bens de capital e investimentos no país. Esses dois vetores centralizam as discussões não só econômicas mas políticas, uma vez que a insegurança financeira assola a sociedade argentina e seu prestígio nos mercados internacionais.
O Banco Central argentino traz algumas formulações para tentar bloquear a fuga de capitais, principalmente, e estabilizar os preços dos produtos essenciais. No pensamento do primeiro caso (fuga de capitais) o Banco Central nacional, investe em uma política de diminuição da taxa de juros com o intuito de minimizar os gastos de empresas multinacionais e nacionais a atuarem no país. Apesar de não terem surgido resultados significativos, a política monetária aposta num mercado mais flexível, para uma adesão internacional, e ajustado, para a atuação das empresas nacionais, que se encontram frágeis diante da crise. Junto a essa política de juros, o ajuste fiscal vem sendo tomado como uma medida paliativa
pelo governo argentino. O corte de gastos governamentais, a taxação sobre as exportações e a venda dos títulos de dívida pública, foram outras decisões tomadas pelos administradores para tentar conter a “tsunami” desenfreada da crise econômica.
Algo que vale ressaltar, é o olhar emergencial que a comunidade internacional enxerga sobre o problema da pobreza na Argentina. Com um nível de pobreza populacional de 42,0%, no segundo semestre de 2020, o caso argentino vem sendo interpretado como um alarme para as economias estatais. Um esforço internacional, ancorado pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, auxilia na busca de minimizar a elevação dos índices de pobreza no país, que aparentam estar em movimento crescente nos últimos anos.
A partir disso, finalmente entendemos que, apesar de medidas paliativas para frear, a crise sócio-econômica ligada ao contágio por coronavírus, a pobreza generalizada, a fuga de capitais estrangeiros, a queda das movimentações de capitais domésticos e as oscilações inflacionárias, o governo argentino vem “tropeçando em pedras” na efetividade da segurança financeira de seus cidadãos e na projeção de suas indústrias para o mercado global.
Referências Bibliográficas
BATISTA, P. N. Argentina: uma crise paradigmática. [S.l.]: [s.n.], 2002.
COLOMBO, Sylvia. Agravada pela pandemia, pobreza na Argentina afeta quase 6 de cada 10 crianças. Folha de S. Paulo, mai. 2021. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/ mundo/2021/05/agravada-pela-pandemia-pobreza-na-argentina-afeta-quase-6-de-cada-10- criancas.shtml >. Acesso em: 06 jul. 2021
FERRARI, Andrés; CUNHA, André M. As origens da crise argentina: uma sugestão de interpretação. Campinas: , ago. 2008. p.47-80.
FERRAZ, R. Argentina: a crise permanente mora ao lado. Veja, 2020. Disponivel em: <https://veja.abril.com.br/mundo/argentina-a-crise-permanente-mora-ao-lado/>. Acesso em: 05 jul. 2021. GONZÁLEZ, E. Argentina’s perpetual crisis. El País, 2021. Disponivel em: <https:// english.elpais.com/usa/2021-03-05/argentinas-perpetual-crisis.html>. Acesso em: 05 jul. 2021.
JOHNSON, María C; CUESTA, Lorena S.; TUMAS, Natalia. Emociones, preocupaciones y reflexiones frente a la pandemia del COVID-19 en Argentina., jun. 2020.
MANÇANO, Luiza. Como a Argentina está enfrentando o coronavírus?. Brasil de Fato, abr. 2020. Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/2020/04/20/como-a-argentina-esta- enfrentando-o-coronavirus >. Acesso em: 06 jul. 2021.
MUSTANTE, Florencia. O Estado em Disputa: reflexões a partir do Brasil e da Argentina frente à pandemia do coronavírus. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas:________, 2021. p.63-81.
TREVIZAN, Karina. Brasil x Argentina: por que a crise econômica do país vizinho é mais delicada?. Invest News, fev. 2021. Disponível em: < https://investnews.com.br/economia/ brasil-x-argentina-por-que-a-crise-economica-do-pais-vizinho-e-mais-delicada/ > Acesso em: 06 jul. 2021 YAHIA, Hanna. Pandemia leva Argentina a nova crise cambial; economistas analisam situação. Poder 360, out. 2020. Disponível em: < https://www.poder360.com.br/economia/ pandemia-leva-argentina-a-nova-crise-cambial-economistas-analisam-situacao/ >. Acesso em: 06 jul. 2021.