Consolidação do governo do MAS na Bolívia e seus novos desafios

Consolidação do governo do MAS na Bolívia e seus novos desafios

Por Eduardo Lira, Georges Eduardo Cruz e Tomás Riera

Deve-se, primeiramente, compreender a formação e a instituição do Movimento ao Socialismo (MAS) na Bolívia. Tal partido tem suas origens na organização dos cocaleros, movimento social bem estruturado, o qual tinha como objetivo a defesa dos direitos dos plantadores de coca do país. A experiência  e organização deste grupo foi o que possibilitou que o MAS (mesmo sendo um partido recém fundado) conquistasse cargos no parlamento e elegesse um presidente em apenas oito anos de trajetória. 

Sua origem é datada no final da década de 1980, como um reflexo das políticas neoliberais, que resultam em um alto índice de desemprego e insatisfação popular. Dessa forma surge o movimento dos indígenas plantadores de coca, estes que denunciavam as misérias deixadas pelo neoliberalismo. Com o passar do tempo, o movimento foi se tornando cada vez mais forte, e recebe uma nova identidade, nomeando-se como Movimento Cocalero, fruto de experiências populares como resposta a movimentos repressivos (tanto por parte da burguesia, quanto por parte do governo) que tinham como intuito erradicar as plantações de coca e criminalizar os cocaleros. A composição deste movimento se dava por camponeses, muitos destes desempregados e pobres do campo, mas que em pouco tempo acabou conquistando novos adeptos e simpatizantes de movimentos estudantis, o que contribui bastante para a popularização da causa, atraindo operários urbanos, donas de casa, intelectuais e desempregados da cidade. [1]

A partir da sua consolidação como um movimento social, que englobava grande parte das classes excluídas do processo político do país, o MAS acabou se consolidando institucionalmente a partir do ano de 1995 [2]. O partido tem suas origens, quando as organizações camponesas, sob a liderança de Evo Morales, filiam-se à Assembleia Pela Soberania dos Povos (ASP). Todavia, não conseguem assinaturas suficientes para conseguir se institucionalizar oficialmente, algo que só iria acontecer no ano de 1997. Tal consolidação dentro no parlamento, veio a partir do resultado da união das organizações sindicais dos cocaleros junto das forças tradicionais da esquerda que tinham pouca representação política [3].

Tal surgimento e consolidação do Movimento Ao Socialismo (MAS) na Bolívia acabou criando um capítulo nunca antes visto na história do país, e isto fica evidenciado na fala dos autores João Paulo Viana & Vinícius Miguel: 

“De certo, a vitória de Evo Morales fundou um novo capítulo na história da Bolívia e do continente sul-americano. Sendo assim, os primeiros anos de governo seriam de suma importância para a consolidação de uma nova hegemonia de poder, em busca da construção da tão sonhada institucionalidade democrática, visando prioritariamente à defesa dos recursos naturais e o respeito ao caráter multiétnico e pluricultural do povo boliviano”. [4]

De modo a elucidar o trecho citado, desde as suas origens até a sua chegada ao poder o MAS sempre se caracterizou como um movimento que buscava defender os interesses das classes mais desfavorecidas dentro da sociedade boliviana e também os interesses nacionais. Tal fato ficou claro quando, em 2005, Evo Morales se tornou o primeiro presidente indigena na história do país. Ademais, tal representatividade ficou clara quando em 2009 o então presidente criou, através de um referendo constitucional, uma nova carta magna que levou a Bolívia a se tornar o primeiro país na história da América Latina a fundar um Estado plurinacional.

Desta forma foi possível que Evo Morales chegasse à presidência, permanecendo no cargo até o final de 2019. Seu governo foi marcado pela nacionalização do petróleo e do gás natural, resultando assim em um crescimento econômico jamais antes visto por toda a América Latina. Também é memorável, como citado anteriormente, a criação de um estado plurinacional, o qual é atribuído aos feitos de seu governo. Ademais, a figura de Morales se torna controversa em 2016 quando tenta mais uma vez permanecer no cargo de presidente através de uma manobra constitucional. Esta e outras tentativas culminaram na crise política de 2019, como podemos observar em:

“Uma das manobras idealizada por Evo foi um referendo em 2016 para que o mesmo pudesse disputar um quarto mandato em 2019. A votação teve o resultado de 51,30% não e 48,7% sim, anteriormente Morales havia conquistado um terceiro mandato em 2014 (ultrapassando o permitido pela constituição) alegando que devido a reformulação do estado boliviano, o mesmo estaria exercendo um segundo mandato ao invés de um terceiro. Apesar do resultado do referendo de 2016 o governo recorreu ao tribunal constitucional para que vários artigos da constituição que barravam a reeleição de Morales fossem considerados ilegais, através destas argumentações e discussões Morales se candidatou para as eleições de 2019.” [5]

Assim sendo, desde o ano de 2016, o país passou a atravessar uma conturbada instabilidade política e social, que teve como resultado a renúncia de diversos políticos ligados ao MAS, dentre eles o Presidente Evo Morales. Tais renúncias foram consequência de pressões por parte da oposição conservadora, do capital internacional e do alto comando das forças armadas que, dentre as causas da crise política que levaram ao rompimento democrático, teve como estopim a tentativa do quarto mandato consecutivo de Morales, à presidência. Portanto, dentro desta conjuntura política, o MAS conseguiu chegar em primeiro lugar nas disputas eleitorais, entretanto a oposição passou a alegar fraude, o que levou a solicitação de anulação das eleições e também a renúncia de Evo Morales a pedido das forças armadas. 

Com a renúncia presidencial de Evo Morales e de seu vice García Linera, de acordo com a lei, quem deveria assumir o cargo seria a presidente do Senado, Adriana Salvatierra, mas a mesma também renunciou sua posição, deixando então a responsabilidade para o sucessor, Victor Borda, este que ocupava o cargo de presidente da Câmara dos Deputados, que também renunciou[6]. Com tamanha instabilidade política a qual o país se encontrava, a então senadora Jeanine Áñez aproveitou a crise política, e se auto proclamou presidenta interina do país, recebendo apoio das forças de segurança do país, tais como a polícia e os militares, silenciando qualquer tipo de manifestação contra a medida tomada. Assim dava-se início a um governo autoproclamado, sem respeito aos processos democráticos e com um caráter autoritário em relação às manifestações em solidariedade a Evo Morales.

Além de que, dentre as decisões políticas tomada pelo governo golpista de Añez, as mais criticadas foram acerca das contínuas repressões policiais[7] por parte do estado aos movimentos sociais que apoiavam o MAS. Tais repressões a partir de assassinatos, desaparecimentos, torturas, censura e punições violentas as manifestações populares, tiveram como objetivo desarticular as bases de apoio do MAS. Para tal, o governo golpista utilizou-se da polícia e das forças armadas, e justificou o aumento no orçamento em tal setor em mais de US$ 5 milhões. [8]

Outro fator negativo que também marcou a gestão de Añez foi a sua administração governamental frente à pandemia de covid-19. O sistema de saúde boliviano colapsou em Julho de 2020 devido a falta de insumos e pela falta de medidas adequadas para conter o contágio do vírus. Além disso, seu governo também contou com escândalos de corrupção envolvendo a compra de respiradores e em apenas 11 meses de governo interino 4 ministros da saúde ocuparam o cargo. Desta forma, o ano de 2020 foi muito afetado em todo o mundo por conta da crise sanitária que acabou impactando fortemente as economias, e a Bolívia não foi exceção. [9]

Por conta do cenário caótico em que se encontrava a Bolívia durante a pandemia em 2020, o governo de Jeanine Áñez adiou as eleições presidenciais justificando a atitude como uma medida de segurança nacional para conter o avanço da covid. A medida foi vista como uma causa legítima, por conta de todo o contexto de 2020, o problema foi a segunda vez que as eleições foram prorrogadas, o quê não somente gerou a insatisfação popular, como também de seus próprios apoiadores. Levando em consideração todo o período em que Jeanine Áñez atuou como presidenta interina, somando os casos de corrupção dentro de seu governo, a presença de militares em cargos públicos, a má gestão ao enfrentar a pandemia mais devastadora dos últimos anos, e todos o casos de violência e abuso de poder, veio uma surpresa. Em outubro, com 55,10% dos votos, já no primeiro turno, o MAS alcança o poder novamente. Dessa vez com o ex-ministro da economia do governo de Evo Morales, responsável pelo milagre econômico, Luis Arce. Justamente por ser considerado o cabeça do plano econômico que alavancou a economia boliviana da última década, Lucho Arce recebeu uma enorme expectativa para lidar com tamanha crise em que se encontrava o país. [10]

Para concluir, resta elencar os desafios que o governo atual de Luis Arce tem que arcar em uma Bolívia afetada pela pandemia de 2020 e pela crise política de 2019. Primeiramente é preciso restabelecer a democracia no país de forma plena, tendo em vista que a crise de 2019 abalou de forma profunda as instituições democráticas do país e que ainda perdura um clima de extrema polarização política que pode futuramente acarretar em novos conflitos. Levando em conta que Arce é visto por muitos como uma figura moderada dentro do MAS, há uma forte expectativa de que seu governo seja capaz de dialogar com a oposição e venha a apaziguar as tensões políticas recentes. Também é esperado do atual presidente conseguir reverter a crise econômica recente que durante o ano de 2020 teve em seu segundo trimestre, uma variação acumulada do PIB de -11,11%. Outra questão que já vem causando controvérsias em seu recente governo é a forma como membros do antigo governo interino estão sendo tratados. Em Março de 2021 Jeanine Añez e ministros de seu governo foram presos sob as acusações de terrorismo e conspiração, os apoiadores de Añez insitem em uma narrativa de que tal ato se trata de uma perseguição ao governo anterior. Devido a isso deve-se deixar claro que estas prisões se tratam de levar à justiça gestores que perseguiram e mataram cidadãos bolivianos durante o seu governo. Assim, Arce tem a responsabilidade de processar essas pessoas seguindo o protocolo jurídico de forma transparente. Por fim, Arce também tem o desafio de se desarticular da figura de Evo Morales, que além de ter sido seu mentor político, seu nome ainda se faz muito presente no imaginário boliviano, o que acaba por gerar disputas no interior do partido MAS.


[1] VIEIRA, Tiago. MACHADO, Eliel. “O movimento cocalero boliviano: Uma contextualização histórica”. EAIC. pp.1-2.

[2] VIANA, João Paulo. MIGUEL, Vinícius. “Bolívia: ascensão indígena ao poder e o Movimento ao Socialismo (MAS). Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, jan-jul, 2012, p. 97.

[3] Ibid.

[4] Ibid, p.102.

[5]  LIRA, Eduardo; CRUZ, Georges Eduardo; RIERA, Tomás. “A ascensão e queda de Evo Morales”, p.4, Julho 2021.

[6] Após 13 anos no poder, Evo Morales renuncia à Presidência da Bolívia”, BBC, novembro 2019.

[7] “ONU relata assassinatos e tortura durante protestos na Bolívia no ano passado”, uol, agosto 2020.

[8] GARINO, Agustina. “O retorno do Movimento ao Socialismo na Bolívia”. Le Monde Diplomatique Brasil, mar. 2021.

[9] Ibid.

[10] Ibid.

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