A história de luta e resistência que levou as mulheres chilenas a participarem da primeira Constituição com paridade de gênero

A história de luta e resistência que levou as mulheres chilenas a participarem da primeira Constituição com paridade de gênero

Por Flávia Pereira Martins, Jerson de Oliveira e Julia Costa

Atualmente, o Chile vive um processo de profundas mudanças políticas com a formulação da nova Carta Magna que substituirá a constituição em vigência: uma herança explícita da ditadura Pinochet. Assim, o presente artigo tem como objetivo se aprofundar na escrita da Nova Constituição chilena, tendo em vista seu critério de paridade de gênero e a participação feminina em todo o processo de demandas sociais e pressões políticas que culminaram no Plebiscito de outubro de 2020. Desde 2019 as ruas chilenas foram tomadas por uma série de protestos, que tiveram como origem o aumento da passagem do metrô em 30 pesos. Apesar do estopim ser a elevação da tarifa mencionada, diferentes pautas entraram como demanda nessas manifestações: a agenda feminista, a questão étnico-racial dos povos originários, a formulação de uma nova constituição…Isto porque, como dizem os próprios chilenos “não são só 30 pesos, mas sim 30 anos”.

A referência aos 30 anos diz respeito às heranças deixadas pela ditadura Pinochet simbolizadas em dois aspectos: a Carta Magna de 1990 e o modelo político-econômico neoliberal. Mais especificamente, este artigo tem a proposta de investigar as marcas morais, políticas e econômicas deixadas às mulheres dentro desse modelo de sociedade chilena, construído ao longo da ditadura Pinochet. Nesse sentido, o que significa uma constituição com paridade de gênero? Mais ainda, qual foi o contexto histórico que levou a luta dessas mulheres a alcançar tamanha representação política frente a um país tão conservador e moralista? Quais são os impactos de uma Nova Constituição redigida por uma Convenção Constitucional, ou seja, com totalidade de seus membros eleitos por votação popular sem necessidade de filiação política?

Em primeiro lugar, abordaremos a construção desse modelo de sociedade chilena e, consequentemente, o papel das mulheres. O Estado neoliberal implementado durante a ditadura Pinochet, fundamentado e legitimado por uma moralidade católica e uma estrutura de poder aristocrática, coloca uma série de empecilhos à participação política das mulheres. A ordem do Estado ditatorial parte de um equilíbrio cuidadoso entre pertencimento e “não pertencimento”, na medida em que aqueles que não participam do modelo político neoliberal são incorporados à sociedade simbolicamente através da comunhão católica. Tomando o caso das mulheres como exemplo, elas não pertencem a estrutura política aristocrática, no entanto elas pertencem ao lar enquanto base fundamental da família. Esse papel atribuído às mulheres é de suma importância, na medida em que a família aos moldes da moralidade católica fundamenta as noções de cidadania e pertencimento da população. É a partir desse campo de valores agregado à cidadania que o Estado impõe lealdade, respeito, identificação e obediência ao seu povo. Logo o papel da mulher simboliza o ápice do controle estatal, seguindo padrões estritos de comportamento que não poderiam ser desviados em nenhuma medida.

Um ponto interessante, dentro dessa moralidade católica patriarcal é pensar como até mesmo pelos grupos de esquerda, a luta dessas mulheres não era bem vista. Como analisa Joana Maria Pedro em suas reflexões sobre as narrativas feministas, os grupos de esquerda olhavam com hostilidade as pautas de sexualidade e autonomia do corpo, uma vez que eram consideradas “ideias específicas”3 que dividiam atenção das verdadeiras prioridades: democratização, anistia e o próprio socialismo. Isso colocava as mulheres em um papel de “dupla militância”, pois não bastava apenas reivindicar a democracia e lutar contra o autoritarismo, precisavam também lutar contra a estrutura patriarcal. Com o fim da ditadura Pinochet, os valores católicos continuaram sendo um pilar fundamental da organização social chilena impactando diretamente na vida dessas mulheres.

“A ditadura de Pinochet acabou com ações de planejamento familiar: desestimulou o uso de contraceptivos, ordenou nos consultórios que se retirassem os DIUs das mulheres e derrubou a lei do Aborto Terapêutico, que existiu até 1989.” (PEDRO.WOITOWIC, 2009)

Um excelente exemplo, nesse sentido, é o direito ao divórcio que apenas foi aprovado em 2004: não é apenas sobre a mulher poder decidir sobre ela mesma, mas sobre o golpe à noção de família que sustenta o Estado. Outra conquista importante, no entanto, também tardia, foi o direito ao aborto que no Chile voltou a ser criminalizado em quaisquer circunstâncias. Sobre este aspecto, a partir de 2017, o aborto foi descriminalizado em três ocasiões: em caso de inviabilidade do feto, de perigo para a mãe e de gravidez decorrente do estupro. Em comparação com o Brasil, também um país conservador que teve uma experiência similar ditatorial associada à moralidade católica, já percebemos a discrepância visto que nossa descriminalização do aborto nessas circunstâncias é de 1940. O direito ao aborto se encontra profundamente ligado não só aos ensinamentos católicos, mas aos valores da família tradicional que como falamos anteriormente era fundamental para reafirmar obediência e autoridade estatal.

Mesmo após o fim da ditadura militar, assim como a moralidade, o afastamento das mulheres da vida política se manteve, uma vez que os partidos chilenos em sua essência continuaram majoritariamente aristocráticos e conservadores. Como foi apresentado na entrevista da reportagem “Chile vai eleger Assembleia Constituinte com igualdade entre homens e mulheres” da Globonews4, o Chile é um dos países da América Latina com as menores parcelas de participação política feminina. Uma das principais pautas dessa agenda feminista, portanto, é justamente a dificuldade em acessar esses espaços de poder: o Estado chileno continua extremamente patriarcal. Em contrapartida aos empecilhos de acesso aos espaços políticos tradicionais, as ruas têm sido historicamente ocupadas por essas mulheres nas demandas por direitos. A “tsunami feminista” em 2018, momento em que várias universidades do país foram ocupadas e as ruas tomadas, é um ótimo exemplo desta tradição.

Depois de várias denúncias de assédio e casos de sexismo dentro das universidades e escolas chilenas, tanto com funcionárias quanto com alunas, uma grande onda de protestos por educação igualitária se seguiu. Dentre as reivindicações, as mulheres pediam por segurança dentro dos espaços de ensino, por políticas institucionais que combatessem o sexismo e parassem de acobertar os assediadores. As manifestações e ocupações foram alinhadas com um esforço coletivo dessas secundaristas e universitárias em trazer o feminismo à cena pública nacional. Isto é, para além de ações puramente punitivistas, elas ocuparam as mídias, trazendo discussões sobre gênero, disparidade entre homens e mulher nos ambientes de trabalho e nas remunerações, condições para mães estudantes e trabalhadores que dificultam seus acessos, mais mulheres nos currículos de leitura, etc. Ou seja, a tsunami feminista de 20185 exigia uma mudança estrutural na educação chilena.

Assim como as ruas, os veículos alternativos de comunicação foram tradicionalmente utilizados por essas mulheres para divulgar e demandar suas pautas. Maria Joana Pedro e Karina Woitowicz apresentam Marea Alta e Puntada con Hilo como jornais e revistas que tratavam das questões que a moralidade católica marginalizou na sociedade como aborto e sexualidade. Como apresentado, na tsunami feminista de 2018, a mídia foi um recurso extremamente poderoso utilizado pelas mulheres chilenas o que nos demonstra essa tradição de resistência. Já no estallido social de 2019, a performance feminista feita pelo coletivo “Las Tesis” com a música “Un violador en tu camino6” colocou as mulheres enquanto protagonistas. A música, que faz referência ao hino da polícia carabineira “Un amigo en tu camino” é explicitamente uma denúncia a estrutura patriarcal do Estado, já que aponta em sua letra que o estuprador não é apenas quem realizou a violência, mas a própria polícia, os juízes, o presidente e o Estado. A performance foi registrada e viralizou na internet sendo reproduzida por movimentos feministas no mundo todo. Uma vez a frente da grande insurreição de demandas sociais que aconteceram no Chile, é preciso reforçar que as visões destas mulheres não se resumiam apenas a questões do mov. feminista mas sim a toda uma estrutura de Estado.

Para além das demandas da pauta feminista, como o aborto e a violência sexual, as mulheres apresentam questões que estão diretamente ligadas a vida cotidiana. Apesar de logicamente as questões do lar, da educação, do bem estar social estarem ligadas a uma estrutura de Estado patriarcal, estas figuras femininas chilenas estão levantando questões do modelo neoliberal que atravessam a vida cotidiana como um todo. Por exemplo, as despesas do fornecimento de água, as dificuldades de locação e moradia, bem como o acesso à educação que são extremamente custosos. Essas são discussões que estão presentes na Assembleia Constituinte e dizem respeito, também, às noções de cidadania, democracia e o Estado que se propõe a reconstruir. Um ponto fundamental, dessa forma, é pensar a ideia de um Estado participativo que vai auxiliar nos problemas sociais latentes.

Se hoje apenas 23% do congresso chileno é composto por mulheres, a escolha pela equidade de gênero entre os 155 membros da Assembleia Constituinte se apresenta como um elemento a tensionar a organização atual da política institucional do país. Isto porque, a incorporação paritária entre homens e mulheres na redação da Nova Constituição significa não apenas o aumento de figuras femininas nos espaços de representação política, mas também a possibilidade de incorporação de uma agenda de gênero no texto constitucional. Portanto, a interesses de mulheres e a não descriminação destes indivíduos nos sistemas social, político e econômico.

Sobre este aspecto, a pandemia do Covid-19 vem mostrando a importância das políticas públicas serem elaboradas em uma perspectiva de gênero. As restrições econômicas fruto dos efeitos da crise sanitária afetaram com maior intensidade as mulheres, justamente por estas se encontrarem em maior número em situações de vulnerabilidade social e econômica.7 A implementação de períodos de quarentena e as restrições das atividades laborais fez com que inúmeras figuras femininas perdessem suas fontes de renda, além de terem sido responsabilizadas pelos cuidados de idosos e crianças, muitas vezes apontado como trabalho não remunerado. Contudo, as políticas de recuperação econômica chilena foram pensadas para contemplar homens, uma vez que os setores masculinizados, como o da construção civil, foram os mais amparados pelo Estado, resultando no aumento do empobrecimento feminino no período da pandemia.

Ainda sobre as rupturas que tange a escrita da Nova Constituição chilena em uma perspectiva de gênero, no que diz respeito aos povos tradicionais, a escolha de mulheres indígenas para presidirem a redação da Carta Magna, apontam para a demanda pelo reconhecimento e inclusão destes sujeitos no sistema institucional do país. A eleição de Elisa Locón, da etnia Mapuche, e a colla Isabel Godoy, como Presidente e Vice Presidente da Assembléia Constituinte, respectivamente, representa não apenas o fim de uma Constituição neoliberal que fortaleceu a marginalização histórica contra essas populações. Esta resolução simboliza também um amplo movimento no bojo da sociedade chilena que vem repensando o próprio sentido da democracia, que mais que nunca passa a se imbricar com a igualdade de direitos e a correção de dívidas históricas.

Assim, o protagonismo de duas mulheres indígenas na construção de uma nova noção de democracia, a partir da escrita da Nova Constituição, significou a ampliação de debates públicos que incorporam uma ampla demanda dos povos indígenas. Nessa conjuntura, não apenas os princípios do plurinacionalismo e do Bem Viver, que se opõe ao racismo sistêmico, à marginalização identitária e ao histórico saque de territórios indígenas, ganharam notoriedade. As especificidades femininas destas populações também foram profundamente pautadas, uma vez que seu histórico de luta e reivindicações femininas muitas vezes não é tematizado em todos os grupos feministas.

Percebe-se que a Constituinte chilena carrega consigo o potencial de romper com inúmeros legados de violência simbólica e material. Seja através da tsunami feminista, da efervecencia dos movimentos sociais ou das grandes manifestações de 2019, inúmeros grupos vem repensando as práticas democráticas e, com isso, construindo, fora e dentro do ambito institucional, novos sentidos de operação das estruturas políticas. Nesse sentido, embora a escrita da Carta Magna seja marcada pela disputa entre diferentes agendas e espectros ideológicos, a renovação do cenário político chileno vem sendo fomentando profundos debates que fortalecem a construção de uma sociedade que preza pela igualdade e justiça entre cidadãos. Dentre os muitos passos em direção à uma sociedade menos desigual, a escrita da Nova Constituição representará o esforço de correção de um país marcado por séculos de opressão: dessa vez, presidido por uma mulher indígena.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MARTÍNEZ, Laura Lara. “Messianismo político e legitimação religiosa na Espanha e no Chile no século XX: um estudo histórico político de sociologia da religião”. Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 4, ed. 11, set./dez. 2010.

MOTTA, RODRIGO PATTO SÁ. Pinochetismo e guerra social no Chile(1937-1989). In: “Ditaduras Militares: Brasil, Argentina, Chile e Uruguai.” Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.

PEDRO, Joana Maria. WOITOWICZ, Karina Janz. “O Movimento Feminista durante a ditadura militar no Brasil e no Chile: conjugando as lutas pela democracia política com o direito ao corpo”. Dossiê gênero, feminismo e ditaduras. Ano X, n. 21, 2o. Semestre 2009, (43-55) – ISSN 1518-4196.

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